Oh meu rico São João!
- Quantos dias faltam para o São João, mãe? - Pergunta uma Just ainda pequena à mãe que já está cansada de ouvir tal pergunta.
- É já amanhã, mas sabes que temos de ir cedo para a casa da avó, não sabes? - responde a mãe com toda a paciência do mundo, mesmo não sendo grande apreciadora de tal tradição.
- Sim mãe. Vamos ver os Bugios, um dia quero ser Bugio! - dizia eu, ainda sem perceber o sacrifício que era ser Bugio.
Após uma noite de sardinhada, largada de balões e fogo de artifício (em que no colo do meu pai fazia questão de ficar a olhar para o céu, mas de ouvidos tapados), o dia 24 de junho começava realmente cedo. Às nove da manhã o orvalho de São João ainda caía e já estava a chegar a casa da avó. As mesas já estavam montadas, prontas para um almoço de família rápido e muitas vezes descoordenado. Os lençóis para tapar o sol do dia quente que se avizinhava já estavam pendurados na ramada de uvas americanas e o cheiro ao assado no forno de lenha também já pairava no ar.
Passava o meu dia de trás para a frente, entre a casa da avó para refrescar um pouco do calor intenso e entre a festa, mas nunca sem perder os momentos mais altos da festa. Pequena, no colo do meu pai ou do alto de uma varanda de uma tia-avó, via sempre a dança de entrada dos Bugios, depois a dança dos Mourisqueiros, sem nunca se cruzarem. Via ainda a procissão religiosa do São João, sempre com andores todos coloridos, com as mais belas flores que podem existir e sempre com o olhar nas pessoas que cumpriam as suas promessas. Umas com velas, outras descalças e uns até vestidos com o traje académico. Claro que os modelitos, de quem está vestido para ir a um casamento não podiam faltar. A manhã passada, com tanto a acontecer na festa que na mesa de almoço nunca estivamos todos ao mesmo tempo, uns apareciam para comer, outros levantavam-se para ir para a festa porque queriam ver o Rei dos Bugios ou ainda dar um salto à igreja antes da parte da tarde começar. Mas nunca ninguém se chateava com isso, cruzávamo-nos na rua, cruzávamo-nos na festa e comentávamos sempre o que tínhamos visto, quem ainda íamos ver e até se os momentos altos do dia estavam atrasados ou adiantados.
À tarde a minha mãe já não queria ir à festa, ficava sempre por casa da avó para não se sujar. Eu, agarrava a mão de uma tia ou de outra e ia toda contente, de sapatilhas para não ser calcada, de roupa escura para não ser um alvo fácil a abater, mas sempre de mão dada a uma das tia para não me perder no meio da confusão da dança do cego. Ia atrás do burro, fugia dos sapatos que teimavam em voar cheios de lama e se por vezes ficava assustada com a forma como as pessoas corriam, por outro era aquela adrenalina, aquele imprevisto que eu tanto gostava. A minha tia só dizia 'nunca vires as costas nem tires os olhos do cego' e lá ia eu, sempre atenta, sempre amedrontada, mas nunca queria sair dali. Já ao fim do dia, o desfecho da festa era visto ao lados dos meus irmãos, a parte do dia que o meu irmão mais gostava, era a prisão do Velho, o momento da chegada da Serpente e a corrida dos Mourisqueiros em fugida do milagre que acontecia.
Eu como criança que era, queria ainda os carroceis e as farturas, mas era todo este ambiente de São João que adorava ver. Era a família sorridente e alegre que me fazia gostar tanto do São João, era toda a romaria de andar de trás para a frente para conseguir acompanhar toda a história. Era a sensação de pertença, de tradição e de história que me fazia adorar este meu São João e por nada do mundo abdicar dele (quantas vezes deveria ter ficado a estudar e fui para a festa, excepto uma e não correu muito bem). Quantas vezes cheguei a casa cheia de lama, de pó, com um pequeno escaldãozinho, cansada, mas com a sensação de mais um São João passado.
Ao longo dos anos as coisas mudaram muito. Os avós partiram e a casa já não nos pertence. Os tios foram-se dividindo e cada um come em sua casa, mas cruzámo-nos na rua, na festa, nas tradições. Sabemos que é ponto de encontro familiar, sabemos que é ali que vamos encontrar o primo, a tia e o tio. Ao fim de 26 anos há coisas que não mudam, a tradição mantém-se e amanhã é lá que vou estar. Já sei tudo de cor, já sei o que quero ver e onde, mas nada me faz perder este dia.
Oh meu rico São João, esperei um ano inteiro por ti e finalmente chegaste!
P.S.: Ainda bem que Ele é tão louco como eu pelo nosso São João.