Destralhar as memórias
(Imagem retirada daqui)
Sempre fui uma pessoa que se agarrou às memórias, desde bem novinha. Sempre me imaginei sentada na cadeira de baloiço, no alpendre da casa, com o cabelo já grisalho e a pegar numa caixinha de memórias que tinha vindo a acumular ao longo da vida. Desde que me lembro que fui acumulando cartas do dia dos namorados, bilhetes de passeios escolares, fotografias dos amigos da primária e até aquela folha que um dia encontrei no chão já no regresso a casa. Quando dei por mim, nas últimas arrumações que tenho abraçado nesta viagem pelo minimalismo, já tinha três ou quatro caixas de memórias. Como era possível com 26 anos já ter tantas caixas de memórias? Pareceu-me algo surreal. Completamente absurdo, afinal ainda não tinha vivido tanto assim! Há anos que não mexia naquelas caixas, estavam para lá atiradas ao pó e a ocupar espaço desnecessariamente. Decidi abri-las, uma a uma e investigar o que nelas havia. E encontrei coisas desde a época em que andava na primária. O meu primeiro diário, bilhetes da minha primeira viagem, o papel de candidatura à universidade. A primeira rosa, a primeira carta de amor, as fotografias de amigas da época, conchas e até recortes de jornais. No meio de tanta coisa havia outra tanta que já nada me significava. Em tempos, na esperança de nunca me esquecer de nada, guardei aquelas pequenas preciosidades como sendo parte de mim, hoje ao vê-las pareciam-me vazias e insignificantes. Algumas, trouxeram-me uma saborosa nostalgia. As cartas em código trocadas com as amigas. O postal de natal da mãe. A carta da avó e até aquele passeio da escola a Barcelona. Decidi então que estava mais que na altura de seleccionar aquilo que eram realmente memórias, daquilo que simplesmente tinha o vazio em si. Lixo, encontrei muito lixo nessas três caixas e do nada, no meio de uma vontade de destralhar, de me livrar do que não interessa e do que não faz parte de mim separei-me de muitas coisas que um dia achei que viria a querer recordar. Enchi dois sacos de lixo e muito papel foi parar à reciclagem. E voltei a sentir aquela sensação de leveza que tanto tenho apreciado com esta minha aventura no minimalismo. De três caixas passei a uma, há coisas que eram impossíveis de desaparecer da minha vida, mas outras para nada serviam. Porque raio ia querer guardar o meu primeiro relógio todo partido e que nem funcionava? E o meu primeiro terêrê? Se em tempos não sabia o que valia apenas guardar como memórias, hoje sei.
Sou feita de memórias, sempre o disse, mas ontem aprendi que posso seleccionar as memórias que quero que continuem a fazer parte de mim. Quero as memórias boas, quero as memórias daquelas pessoas que saíram sorrateiramente da minha vida, mas que deixaram a sua marca. Quero manter a parte boa de mim. Quero manter os meus diários que nunca deixaram de ser escritos desde os sete anos. Quero manter aquele postal da mãe que me traz uma lágrima boa. Quero guardar aquele bilhete daquele dia memorável da queima. Quero apenas guardar o que me faz bem, o que me faz sentir completa. O resto? O resto pouco importa. O resto não precisa de ocupar espaço, prefiro um dia vir a preenchê-lo com coisas ainda melhores.
Hoje sei que quando for velhinha e estiver no alpendre, com um chá na mão e a brisa do fim do verão me remexer os cabelos grisalhos, ao abrir aquela caixa, vou só encontrar coisas boas.