Traumas da infância
(Imagem retirada da Internet)
A escola primária deve ser um dos maiores marcos da nossa vida, principalmente para uma criança que nunca andou num infantário ou numa creche. Deve ser a altura da vida em que criamos mais amigos e que mais andamos à pancada com o rapazes, é a fase das meninas brincarem com as bonecas e os rapazes à bola. O primeiro ciclo deve ser visto como a idade de ouro, em que ainda somos esponjas de conhecimento e que aprendemos a escrever e a ler, a contar e a dividir. Pelo menos é assim para muita gente, já para mim, é uma época cheia de traumas.
Hoje estava eu a passar na estrada nacional de carrinho quando olho para a minha direita e vejo uma antiga professora da minha escola primária. Quando a vi assombrou-me um ódio terrível na alma e só me lembrei daquela terrível época.
Sou de uma terrinha pequena, mas que não é do fim do mundo(!), e a minha professora primária foi professora da minha tia e do meu irmão, por isso imaginem a idade que ela tinha quando me começou a dar aulas! Ela era má como as cobras, sim apesar de ter nascido nos anos 90, ainda sou da época das réguadas, das chapadas a torto e a direito, de chamar aos alunos burros e imbecis e de tantas outras barbaridades que nem imaginam. Quando entrei para a escola e a professora me bateu a primeira vez, isto deve ter sido ao fim de duas semanas de aulas, eu fiquei chocada. A minha mãe nunca me tinha batido porque nunca fui criança de fazer asneiras e aquela parva, só porque me enganei na direcção das ondas, mandou-me um estalo. Cheguei a casa a chorar e nos dias que se seguiram não queria ir para a escola porque tinha medo.
A minha mãe, como mulher corajosa que é, foi falar com a professora e dizer para não me bater. Ora coitada de mim, num dia em que ela devia estar com sindrome de low weight (para quem não sabe, é melhor traduzir para português) decidiu correr a turma toda à chapada, chegou à minha vez e disse alto e bom som para toda a turma 'Ah Eu só não bato nesta menina porque a mãe dela não deixa!'. Ora, humilhada como estava e ainda olhava para os olhos dos meus amigos cheios de lágrimas, decidi armar-me em parva e disse 'Pode bater-me'. Sim, desculpem a minha estupidez, mas tinha 6 ou 7 anos. Nesse dia cheguei outra vez a casa a chorar que nem uma madalena e disse à minha mãe 'Porque é que não deixas a professora bater-me? Ela bateu em todos menos em mim!', ao que a minha mãe responde 'Porque tenho a certeza que não fizeste nada de errado para ela ter de te bater.' Ora a partir daí iniciou-se uma guerra aberta entre as professoras daquela escola que eram todas tão boas peças quanto a minha, contra as mães que achavam que não era a bater que as crianças aprendiam e ainda com as mães que achavam que uma valente chapada de vez enquanto fazia bem.
A partir daí foi por épocas, a professora passava uns tempos sem nos bater porque uma das mães ia fazer-lhe queixa, e depois passava-se dos carretos e pegava nas réguas de madeira (grossa ou fina, dependia do dia) e começava, um a um, a pedir a cada aluno para pôr as mãos geladas em cima da mesa para levar umas réguadas. Naquela altura, as professoras ainda tinham muito poder e havia mães que não tomavam uma posição porque tinham receio que as professoras descarregassem nos seus filhos. A maioria das mães não eram instruidas e só tinham o quarto ano de escola e por isso achavam que quem sabia educar os seus filhos eram as professoras, mas a minha mãe não concordava. Toda esta violência em crianças que erravam numa conta de 2+5 tinha graves repercuções em nós, tinha umas amigas que vomitavam todos os dias na sala de aula (e a professora ainda tinha a lata de perguntar se a miuda tinha medo dela!), outras choravam sempre que a mãe as deixava na escola e outras nem queriam levantar-se da cama (como era o meu caso).
Foram mais de três anos de pura tortura e humilhação até que uma associação de mais constituída por uma advogada, uma professora, um arquitecto e a minha mãe decidiram tomar uma posição. Iria-se acabar a violência naquela escola. A associação encarou as quatro professoras e disse que se isso continuasse assim iam para tribunal. Lembro-me perfeitamente dessa época, as professoras passavam os intervalos em reuniões, andavam irritadas mas não batiam, só gritavam. Contudo, algumas chapadas não foram excluídas do cardápio. Então, no fim do meu quarto ano tudo terminou, ou a associação de pais fazia queixa delas ao ministério da educação ou elas iam todas para a reforma. E assim foi. Aquelas quatro nunca mais tornaram a atormentar as crianças, fui uma das últimas a conhecê-las, não é que me orgulhe, mas pelo menos sei que os que vieram a seguir não passaram pelo mesmo que eu.
Hoje em dia, as coisas mudaram e os alunos (como eu fui) já não têm medo dos professores, o papel inverteu-se, os professores é que têm medo dos alunos. E apesar das coisas estarem mal na educação orgulho-me de dizer que nunca mais uma criança naquela escola soube-me o que era levar com uma régua de madeira nas mãos, dez vezes, num dia de inverno, numa sala onde só existia um aquecedor a óleo para a professora.